Escrever sobre a experiência da Clínica Pública de Psicanálise dias antes do início de suas atividades plenas é um convite à descoberta dos significados que ela terá na vida de seus frequentadores. Esta clínica tem raízes profundas numa tradição de psicanalistas que, há décadas, reconhecem a psicanálise como algo intrinsecamente ligado à vida social, capaz de contribuir significativamente com a coletividade. Ampliar sua atuação, além do consultório, pode gerar muitos frutos.
Raízes Históricas e Pessoais
A história da clínica não começa agora. Ela se entrelaça com o percurso de Marco Fernandes, um companheiro de luta e de psicanálise, com quem iniciei meus estudos e conversas sobre o tema. Marco, que não pode estar presente no grupo devido a seus compromissos de militância, me apresentou ao Sedes Sapientiae, um instituto crucial na história da esquerda brasileira e latino-americana, e na democratização da psicanálise. Esta conexão é fundamental, pois reflete a continuidade de um legado que entende a psicanálise como parte da vida social.
O Encontro com a Luta Social
Desde 2012, nossa amizade foi alimentada por um interesse comum: a interseção entre psicanálise e luta social. Marco, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e eu, envolvido no Movimento Passe Livre, compartilhamos um desejo político e amoroso de criar uma vida verdadeira em um país marcado por profundas desigualdades. Esta união se manifesta no atendimento a pessoas extenuadas pelo trabalho e pelas batalhas diárias da sobrevivência. Dados da Secretaria Municipal de Saúde de 2015 mostram um aumento de 47% no número de usuários de medicamentos tarja preta na rede municipal, indicando uma crescente demanda por cuidado psicológico.
A Crítica à Cultura da Medicação
É necessário questionar a forte relação entre a indústria farmacêutica, as políticas públicas de saúde e o esquecimento das psicoterapias. As respostas genéricas e homogêneas dos tratamentos medicamentosos ignoram a história individual de cada sujeito, perpetuando um ciclo de adoecimento. Pensamos em utilizar a psicanálise como instrumento de emancipação, terapêutico e desalienante, utilizando a escuta para entender as formações da subjetividade brasileira e popular.
A Inversão Política da Psicanálise
A psicanálise, ao deslocar a autoridade tradicional do médico, reconhece que a verdade psíquica e a história surgem do próprio paciente, agora sujeito. Esse encontro entre as características da psicanálise e a forma política que defendemos cria uma relação radicalmente democrática. Nossa primeira experiência ocorreu em 2013, na Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, em Guararema (SP), onde Marco atendeu militantes de um curso para latino-americanos. Em 2014, juntei-me a ele, atendendo brasileiros, de diversas regiões do Brasil e até da Argentina.
O Convite da Graziela Kunsch
No ano passado, a artista Graziela Kunsch, também militante do Movimento Passe Livre, sugeriu: “E se fizéssemos uma clínica pública lá na Itororó?” Ela já trabalhava no Canteiro Aberto e tinha uma relação de referência com os ex-moradores da Vila Itororó. A ideia era criar um espaço para que essas histórias pudessem ser elaboradas pelos ex-moradores, num trabalho de psicanálise que abrisse espaço para a cidade e suas histórias. A clínica ampliada atenderá ex-moradores, integrantes de movimentos sociais e qualquer pessoa interessada, em um espaço móvel com um divã construído pelos próprios psicanalistas.
A Clínica como Espaço Público
Uma clínica no coração de um espaço público, aberta à experiência de deixar a cidade e as pessoas adentrarem, com uma janela voltada para o casarão histórico da Vila Itororó. Será um espaço onde o consultório vira não-consultório, tornando-se a própria cidade. Destaco a forte presença de formação e prática de acompanhamento terapêutico entre os psicanalistas do grupo. Essa prática amplia as possibilidades de atendimento, incorporando os territórios da cidade como parte do processo terapêutico. A psicanálise como descoberta e investimento afetivo desses territórios amplia os sentidos da “cidade psíquica” que o sujeito percorre. Construir uma cidade verdadeiramente democrática é também uma intervenção terapêutica.
Importância da Clínica Pública em Tempos Conservadores
A Clínica Pública de Psicanálise é de vital importância num contexto de aumento do conservadorismo na sociedade, onde a cultura do trabalho exaustivo é idealizada. Em tempos de um governo que dissolve espaços e políticas públicas em benefício dos interesses de poucos, a clínica se destaca como um espaço de cuidado e resistência. Ela não é um fim em si mesma, mas um ponto de partida para multiplicar clínicas públicas, populares e comunitárias, em diversos espaços públicos e coletivos, criando um movimento de cuidado dos sofrimentos e da vida.
Conclusão
A Clínica Pública de Psicanálise na Vila Itororó representa um passo importante na integração da psicanálise com a vida social e política. Ela desafia os limites tradicionais da prática psicanalítica, abrindo espaço para a escuta, o diálogo e a construção de uma vida coletiva mais saudável e justa. Que impacto terá na vida da comunidade, na cidade e no mundo da psicanálise? E se muitas outras clínicas públicas forem construídas?
Daniel Guimarães, 29 de junho de 2016.